domingo, 14 de fevereiro de 2010
"ela fazia de tudo para reduzir
o perpétuo entumescimento do olhar.
cozinhava, esfregava o chão, limpava.
às vezes chegava até a escrever-lhe cartas
que sabia não conseguir enviar. depois
ficava meigamente encostada à dolorosa
intenção do corpo, mergulhada num misterioso
arrebatamento. por vezes parava, muito atenta
ao respirar das coisas enquanto tentava
dominar o medo, tomar uma qualquer decisão.
mas não. perpetuamente fatigada do teatro do mundo,
enlouquecia sabiamente na mansidão desse olhar."
ML
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
Balada do Cavaleiro Apócrifo
Artur, recomposto, suspira, ao presenciar o nascimento de um novo dia.
Artur, brinca nos prados, nos montes, entre urzes e madressilvas.
Brinca solitário, lutando contra opositores invisíveis que lhe obedecem fielmente. A espada é de madeira mas a vontade é de ferro.
Artur, atormenta os rebanhos, afugenta os cães vadios, atraiçoa as libélulas.
Em manobras de diversão, engana exércitos, enxota cavaleiros perdidos, aniquila reis, figuras de mito que, com um único golpe, relega novamente para a miséria de uma sepultura cavada no conforto do passado.
Até que um dia, ao repousar sobre as raízes de um olmo, remexendo a terra salpicada de folhas caídas, a sua pequena mão encontra uma espada. Uma arma verdadeira, com a qual poderá finalmente dominar o resto do mundo ainda por conquistar.
Com ela, corta em dois o véu das horas, criva a terra de feridas insanáveis, e arma cavaleiros fugidios no tempo que ainda lhe resta.
Apenas uma donzela poderá preencher a última lacuna do seu êxito bélico. E conquista-a ao inimigo num final de tarde em que, distraído, cai sobre a lâmina da sua espada. A donzela não demora a aliviar-lhe a dor, acariciando-lhe os cabelos encanecidos, e fechando-lhe os olhos que já nada viam.
Foi-lhe dado o nome de Artur – nome de rei. E fez juz ao seu nome, pois brincava, desde criança, aos cavaleiros na muralha arruinada, lá em cima, no monte. Lá em cima tudo é diferente: tudo é belo e resplandecente. Os cavalos alados transportam guerreiros até às nuvens de ouro e de prata, e Artur é um deles, que sonhando já estar morto, vive de sonhos e lendas sem contudo viver nada.
Hoje, Artur perdeu a infância, e vive desconsolado, esquecido, abandonado, podre e só, como um segredo bem guardado.